Para João
Alvorada. Eu estava deitada quando o vi pela primeira vez. Não dei importância, nessa hora todos os gatos são pardos. Me lançou um longo olhar e partiu. Pra mim não é, pensei, estou deitada na Arvore da Criação e quem passa por mim sem parar não vale a pena. Rosnei, olhei para o horizonte e sorri. E ele sumiu.
Passaram-se semanas e me esqueci dele. Tantas paisagens, tantas ações cotidianas a serem cumpridas, não tinha tempo para delírios.
Acordei com uma pata em meu pescoço. Não tinha forças para gritar. Era o mesmo estranho. Diga quem és! Falamos juntos. E silenciamos juntos. Suas garras me metiam medo e me enlouqueciam. Vi que de fato o estranho não pertencia ao nosso grupo. Me alegrei por isso, todos ali me pareciam óbvios demais. Virei a cabeça e percebi um pequeno pássaro que nos observava ao longe. Estremeci por saber do auguro do pássaro. Tinha que manter a força, respondi apenas com vogais: Aaaaaaaooooooooooooo... Ele não retrocedeu. Aaaaaaaaoooooaaaaaa.... Ele me olhou nos olhos e tirou apenas a pata esquerda de cima de mim. A direita levou até o meu ombro direito, já trêmulo, confuso de tanta hesitação. Nunca tinha me deparado com um ser assim, distinto no espelho e íntimo na distância. Agora estou perdida. Sem pressa ele se pôs no chão e me disse, baixinho – Estamos tramados. – Perdeu-se na savana.
Perdi-me. Horas e horas sem um movimento, sem um pensamento além da tal trama. Que enredo seria esse?
Eu e minha Arvore da Criação. Sua sombra e sua determinação sobre o meu ciclo. Eu e meu lugarejo. Eu e minhas horas de tédio e de pavor, ociosa no horror do eterno esperar algum sinal de vida. Da minha vida ou da vida dele. Pelo menos de um pedaço da sua garra. Um filete de sangue meu, almejando cair na beira do abismo.
Nova alvorada, todos os dias.
- Te proponho um jogo.
- Jogo?
- Sim, temos os dois as armas.
- Não tenho arma alguma, não levo nada.
- Tens o necessário.
- Não tenho força.
- Garra.
- Como?
- Tens garra. É isso que me importa. Nosso jogo será um jogo de garras.
Espantei-me como nunca. Um jogo de garras? Eu que passei a vida inteira sendo reprimida por possuir as tais garras deveria agora mostrá-las? Como? Acho que não saberia mais olhar para as minhas patas.
- O que foi? Tens medo?
- Sim, muito medo. Uma vez cacei um pequeno gambá. Não oferecia perigo algum e por isso virei meu rosto. Fechei os olhos e pensei numa água, bem fresca. Acordei com essa marca que me arrancou o pêlo do lombo. Matei-o mas não o comi.
Era o que eu queria fazer com ele. Mata-lo, mas não me apetecia por a mesa para jantar. Nunca nenhum macho me pôs naquela condição. Sou forte e...
- Corre pequena, corre. Quero te ver fugir. Quando você pensar que chegou no final estarei lá, rindo da sua pressa.
Mas eu não sorri para ele. Tinha um tom severo e ríspido. Não estava para brincadeiras, era o necessário para o momento. Ele, ao contrário, parecia um filhote.
- Vou te contar um segredo. A vida não é nada difícil A vida é apenas... Interessante.
E olho para a minha arvore, a que eu acreditava ter sido a primeira do mundo.
- Você leva as coisas à serio demais. Foi criada no circo, no picadeiro. Eu conquistei a África, não necessito de platéias.
Como ele sabia disso?
- Tire suas luvas, não és gata. Ilumita-te com seu primitivo e devore, sem pensar.
Pela primeira vez comi um leão. E tive tanto prazer que tenho medo de matar todos ao meu redor.
Entardecer. Meu espelho fugiu-me das mãos. Não posso reter mais nadas, minhas garras estão imensas, incontroláveis. Era o jogo da eternidade.