sábado, 21 de novembro de 2009

Chutes e pontapés

Para Miguel

Vejo canelas todo o tempo. Canelas finas, grossas, tortas e descoradas. Rápidas e mancas. Algumas vezes sinto vontade de toca-las mas não posso, sei que seria chutado. Aliás sei que nasci para ser chutado. Sinto algum prazer em levar um pequeno empurrão, a não ser para acordar. Fico assustado e paraliso, como que suspenso no tempo. Depois me ponho a correr, desafiando notas musicais irregistráveis ao ouvido humano.
Ontem me apaixonei por uma canalha. Sim, ela balança o rabo, apenas passa na pequena travessa como quem vai para o mar. Cheiro seu rastro e lembro da forma mais bonita que vi na vida. A forma de uma grande mão grande em minha cabeça. Era de uma leveza e de uma constância aquele cafuné que me confundi com o chão. Fui amolecendo, amolecendo até me desmanchar em passeio de rua.
Quase não enxergo mais, não entendo. O dia e a noite já me são indiferentes, só noto a brisa fria que me gela as orelhas. E bato as orelhas como as pombas batem as asas, rápidas, uma técnica bem particular que desenvolvi ao longo de todos esses anos vivendo em esquinas.
Sim, um cão de rua deveria apenas dormir em esquinas, para que todos os cantos possam ser vigiados pelo sonho de estar à salvo.
Falta de comida não tenho, tenho falta de água. O lixo seca rápido e as ladeiras escorrem todo o meu sumo perdido. Por isso só posso ser alegre na chuva, apesar da dor de ouvido posterior.
Mas voltando às canelas... Ah, as canelas coloridas me encantam. Os tecidos vivos tornam-se machas multicores quando corremos na direção oposta das canelas. Agora então que quase não vejo mais minha memória despojou-se de todo pudor e criou uma via direta para a imaginação. Minhas canelas agora são frangos, morangos ou pedras. São amarelas, bem clarinhas, que se transformam em imensas caixas de papelão batendo no chão. Terminam como um dos meus maiores amores: rodas de carro. Mas rodas de carro paradas, em movimento não me interessam.
Adoro assustar pessoas distraídas, preocupadas demais com as próprias canelas e esquecidas demais com tudo aquilo que não esteja no seu corpo. Ter duas canelas é apenas uma entre tantas outras limitações da espécie humana. É bem grave na verdade, dificulta o ato de correr. E correr significa liberdade.
Mesmo quase cego me propus a correr todos os dias, até quando estou faminto. Ser livre é poder ter fome e não ter raiva disso. É saber que no lixo está o meu banquete e eu agradeço por isso. Balanço feliz o meu rabo para a primeira canela que vejo acompanhada de outra canela à espera de mais um chute que me leve para o canteiro de flores bebês . Ou que me desperte a vontade de me pôr à liberdade.











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