sábado, 21 de novembro de 2009

Declínio para o sublime

Sou sem medida. Toda vez que vou colocar sorvete no copo o sorvete cai no chão. É sempre sorvete demais. Quando começo a cantar todo dizem: fala baixo! Mas se estou cantando como posso FALAR baixo? Isso me irrita, usar uma coisa para outra coisa que não é aquela coisa. As pessoas vivem fazendo isso, confundindo falar com cantar.
Não sei, quando estou pulando na cama da mamãe parece que eu deixo de respirar. É como se eu parasse de existir e ficasse só pulando e rindo, pra cima e pra baixo batendo os braços. Alegria sem entender nada, pra não entender nada. E depois só consigo respirar e não dá nem pra falar porque não tenho fôlego e também é muito cansativo, nossa, fico exausta. Viver é mesmo muito cansativo. Começo a perder o ar e logo acho que é castigo porque fiz pula pula na cama da minha mãe e ela já me disse que eu não posso fazer mas gosto tanto que não consigo não fazer! Que medo de morrer porque não consigo respirar mais na cama dela, é melhor descer antes que a culpa me descubra em cima do pula pula disfarçado de lençol.
Uma vez Marcelo, meu irmão, me disse algo sobre a lógica. Achei tudo muito confuso, não consigo apresentar as coisas assim. Só consigo mesmo imaginar como seria o mundo se todos voássemos em borboletas verdes. Nunca vi uma borboleta verde. Acho que tem uma no desenho do Peter Pan. Marcelo sempre me diz coisas sérias como, por exemplo, que não posso pintar a cama da minha irmã mais velha com a tinta que ela acabou de ganhar. Na verdade não quero saber, quero só enfiar meus dedos nos potes de tinta e criar os caminhos das borboletas no meio da serra. É bom. Acho que ficou bem melhor depois que eu a pintei. Marcelo é meu irmão ou meu pai?
Sempre me dizem que sou sem limite. Mas consigo ver a ponta das minhas mãos, apesar de que quando deixo as unhas crescerem as minhas mãos ficam muuuuuito maiores.
É muito sério essa coisa de imaginar coisas. Já imaginei um grande hipopótamo sentado no meu lugar da escola. Aposto que seria castigada por todas as coisas que Marcelo fez. E não poderia comer jabuticabas ou pontas de lápis. Eu morreria, com certeza, é muito violento.
Fiz bolos de barro no quintal da casa da vovó. Usei folhas secas, grama e alguns galhos secos para mudar os bolos de lugar. Tudo na natureza é muito grande e não tenho espaço dentro dela. Resolvi comer os bolos. Tavam gostosos mas decididamente não gosto do barro muito seco, prefiro com um bocado de água do mar. Fecho os olhos e abro a gaiola das minhas gaivotas. Elas são passarinhos misturados com patos. E não bicam, apenas tocam gaitas e sorriem. Toda vez que quero ser feliz procuro em mim um bolo de terra da casa da minha avó, apesar da minha mãe ter ficado muito brava comigo nesse dia e quase ter me batido mesmo de verdade.
Não me interesso por nada. Minha medida é o mundo. Tudo que faço é como quero e é necessário. Não têm forma de nada. Só sei que é muito, muitíssimo mesmo, sem comparação com nada e com ninguém. Fechar os olhos, passar a língua nos dentes e arrumar a coluna. Tudo grande, dentro de mim. Simplesmente igual a mim. Não quero dar nomes ou determinar o que cada um é. Quero estar disposta a ser.
Hoje não faço varais na escola e vou comer pouco. Talvez cole um papel na blusa de algum colega dormindo, ou quebre um copo na cozinha lá de casa. Hoje puxo a orelha de um cão pra me animar.
Mesmo antes de aprender a ler contava estórias escritas nos livros. E sem desenhos. Sentava no primeiro degrau da escada da cozinha e via a sopa transformar-se em sonho estomacal. Adoro macarrão em forma de estrelas. Como uma constelação.
Ainda na culinária uma receita infalível para uma boa porcaria: pegue todos cremes de cabelo da sua avó, pastas de dentes, pomadas de pé, pomadas de pele, mercúrio cromo, pomadas de espinha, esmalte, pastilhas de garganta (não se esqueça de chupar todo o açúcar antes e depois cuspi-las) e tudo cremoso ou pastoso que você encontrar. Arrume um jarro grande mas com a boca pequena, discreto, aquele que fica no canto da casa dela. Misture tudo com os dedos lá dentro e cuspa as pastilhas ao final. Deixe escondido até alguém descobrir. Fuja das palmadas dando risadas, sempre. Cantando.

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