sábado, 21 de novembro de 2009

Diário sem data. Por temporadas e sensações

Vila Nova de Gaia, Portugal – Junho de 2009

Portugal: meu Porto. Uma Oxum morando na praia, uma estrangeira, a infância no Velho Continente. A transposição do virtual para o real, do sonho para a construção, das palavras para o trabalho. Sou Florbela, vinho e queijo do Alentejo. Sou saudade de terreiro e terrenos. Um olhar na varanda chuvosa anuncia o desconhecido de ruas avantajadas e obscuras para mim. O sotaque ordena que a solidão se encoste e as poucos assento-me em uma cadeira. Recomeço tudo. Aprendo a andar, a falar, a escrever. Aprendo a apertar botões. Aprendo amar e lavar louças. A reconhecer em mim a calma e o desejo de que o rio, naturalmente, corra para o mar.



Na minha cidade me perdia, deliciosamente, nos outros. Aqui observo quem sou realmente, sem a dispersão do espelho da amizade e do acolhimento. Se eu chorar é uma mera conseqüência da fragilidade de ser sozinha e única. Queria ser um produto em série.



Que vontade de correr!!!! Vontade boa.


Evolução da relação:

Antes eu era querida – agora sou puta.
Antes eu era a mulher mais linda q ele tinha visto – agora sou gorda.
Conclusão: sou uma puta gorda em menos de um mês!!!
Grande evolução. Como tudo por aqui: bem rápido.


Tenho sonhado muito. Meu inconsciente tem mostrado seu trabalho de forma presente, cotidianamente. Por que será?


Hoje resolvo o mistério da quizila.


Referência: 16 de junho

O egoísmo é o tom dominante da humanidade, não há variação ou subdominante. Tudo se resume à melodia do egoísmo.


Me sinto tão melodicamente melancólica.

Outras cidades portuguesas, 10 de junho

Busco na forma o conteúdo. Saco vazio pode sim parar em pé.

Agora consigo declarar a minha independência: viva a solidão! Gosto de ir e vir sem responsabilidade, sem laços ou receios. Se me assaltarem não perco nada, nem a vida ou a ida para a próxima estação. Vou a pé mesmo, sem pressa de chegar no horário marcado. Ele que se foda, vai me esperar até meus pés cansarem e ficarem com bolhas terríveis.

Estou me acostumando a um novo tipo de relacionamento: nunca te vi sempre te amei. Quando mais exótico melhor, quero mergulhar no diferente, na inconstância e na distância de toda e qualquer segurança. Quero não entender a fala do outro para não me entender no espelho.

E se eu parasse de fazer teatro?????

Hoje eu me leio e falo: por que n escrevi mais? Uma pena, gostei do que li. Talvez tenha sido a tônica da minha viagem. Por que n produzi mais? Por que n passeei mais? Por que não gozei mais? O meu problema é a preguiça....

Chutes e pontapés

Para Miguel

Vejo canelas todo o tempo. Canelas finas, grossas, tortas e descoradas. Rápidas e mancas. Algumas vezes sinto vontade de toca-las mas não posso, sei que seria chutado. Aliás sei que nasci para ser chutado. Sinto algum prazer em levar um pequeno empurrão, a não ser para acordar. Fico assustado e paraliso, como que suspenso no tempo. Depois me ponho a correr, desafiando notas musicais irregistráveis ao ouvido humano.
Ontem me apaixonei por uma canalha. Sim, ela balança o rabo, apenas passa na pequena travessa como quem vai para o mar. Cheiro seu rastro e lembro da forma mais bonita que vi na vida. A forma de uma grande mão grande em minha cabeça. Era de uma leveza e de uma constância aquele cafuné que me confundi com o chão. Fui amolecendo, amolecendo até me desmanchar em passeio de rua.
Quase não enxergo mais, não entendo. O dia e a noite já me são indiferentes, só noto a brisa fria que me gela as orelhas. E bato as orelhas como as pombas batem as asas, rápidas, uma técnica bem particular que desenvolvi ao longo de todos esses anos vivendo em esquinas.
Sim, um cão de rua deveria apenas dormir em esquinas, para que todos os cantos possam ser vigiados pelo sonho de estar à salvo.
Falta de comida não tenho, tenho falta de água. O lixo seca rápido e as ladeiras escorrem todo o meu sumo perdido. Por isso só posso ser alegre na chuva, apesar da dor de ouvido posterior.
Mas voltando às canelas... Ah, as canelas coloridas me encantam. Os tecidos vivos tornam-se machas multicores quando corremos na direção oposta das canelas. Agora então que quase não vejo mais minha memória despojou-se de todo pudor e criou uma via direta para a imaginação. Minhas canelas agora são frangos, morangos ou pedras. São amarelas, bem clarinhas, que se transformam em imensas caixas de papelão batendo no chão. Terminam como um dos meus maiores amores: rodas de carro. Mas rodas de carro paradas, em movimento não me interessam.
Adoro assustar pessoas distraídas, preocupadas demais com as próprias canelas e esquecidas demais com tudo aquilo que não esteja no seu corpo. Ter duas canelas é apenas uma entre tantas outras limitações da espécie humana. É bem grave na verdade, dificulta o ato de correr. E correr significa liberdade.
Mesmo quase cego me propus a correr todos os dias, até quando estou faminto. Ser livre é poder ter fome e não ter raiva disso. É saber que no lixo está o meu banquete e eu agradeço por isso. Balanço feliz o meu rabo para a primeira canela que vejo acompanhada de outra canela à espera de mais um chute que me leve para o canteiro de flores bebês . Ou que me desperte a vontade de me pôr à liberdade.











Declínio para o sublime

Sou sem medida. Toda vez que vou colocar sorvete no copo o sorvete cai no chão. É sempre sorvete demais. Quando começo a cantar todo dizem: fala baixo! Mas se estou cantando como posso FALAR baixo? Isso me irrita, usar uma coisa para outra coisa que não é aquela coisa. As pessoas vivem fazendo isso, confundindo falar com cantar.
Não sei, quando estou pulando na cama da mamãe parece que eu deixo de respirar. É como se eu parasse de existir e ficasse só pulando e rindo, pra cima e pra baixo batendo os braços. Alegria sem entender nada, pra não entender nada. E depois só consigo respirar e não dá nem pra falar porque não tenho fôlego e também é muito cansativo, nossa, fico exausta. Viver é mesmo muito cansativo. Começo a perder o ar e logo acho que é castigo porque fiz pula pula na cama da minha mãe e ela já me disse que eu não posso fazer mas gosto tanto que não consigo não fazer! Que medo de morrer porque não consigo respirar mais na cama dela, é melhor descer antes que a culpa me descubra em cima do pula pula disfarçado de lençol.
Uma vez Marcelo, meu irmão, me disse algo sobre a lógica. Achei tudo muito confuso, não consigo apresentar as coisas assim. Só consigo mesmo imaginar como seria o mundo se todos voássemos em borboletas verdes. Nunca vi uma borboleta verde. Acho que tem uma no desenho do Peter Pan. Marcelo sempre me diz coisas sérias como, por exemplo, que não posso pintar a cama da minha irmã mais velha com a tinta que ela acabou de ganhar. Na verdade não quero saber, quero só enfiar meus dedos nos potes de tinta e criar os caminhos das borboletas no meio da serra. É bom. Acho que ficou bem melhor depois que eu a pintei. Marcelo é meu irmão ou meu pai?
Sempre me dizem que sou sem limite. Mas consigo ver a ponta das minhas mãos, apesar de que quando deixo as unhas crescerem as minhas mãos ficam muuuuuito maiores.
É muito sério essa coisa de imaginar coisas. Já imaginei um grande hipopótamo sentado no meu lugar da escola. Aposto que seria castigada por todas as coisas que Marcelo fez. E não poderia comer jabuticabas ou pontas de lápis. Eu morreria, com certeza, é muito violento.
Fiz bolos de barro no quintal da casa da vovó. Usei folhas secas, grama e alguns galhos secos para mudar os bolos de lugar. Tudo na natureza é muito grande e não tenho espaço dentro dela. Resolvi comer os bolos. Tavam gostosos mas decididamente não gosto do barro muito seco, prefiro com um bocado de água do mar. Fecho os olhos e abro a gaiola das minhas gaivotas. Elas são passarinhos misturados com patos. E não bicam, apenas tocam gaitas e sorriem. Toda vez que quero ser feliz procuro em mim um bolo de terra da casa da minha avó, apesar da minha mãe ter ficado muito brava comigo nesse dia e quase ter me batido mesmo de verdade.
Não me interesso por nada. Minha medida é o mundo. Tudo que faço é como quero e é necessário. Não têm forma de nada. Só sei que é muito, muitíssimo mesmo, sem comparação com nada e com ninguém. Fechar os olhos, passar a língua nos dentes e arrumar a coluna. Tudo grande, dentro de mim. Simplesmente igual a mim. Não quero dar nomes ou determinar o que cada um é. Quero estar disposta a ser.
Hoje não faço varais na escola e vou comer pouco. Talvez cole um papel na blusa de algum colega dormindo, ou quebre um copo na cozinha lá de casa. Hoje puxo a orelha de um cão pra me animar.
Mesmo antes de aprender a ler contava estórias escritas nos livros. E sem desenhos. Sentava no primeiro degrau da escada da cozinha e via a sopa transformar-se em sonho estomacal. Adoro macarrão em forma de estrelas. Como uma constelação.
Ainda na culinária uma receita infalível para uma boa porcaria: pegue todos cremes de cabelo da sua avó, pastas de dentes, pomadas de pé, pomadas de pele, mercúrio cromo, pomadas de espinha, esmalte, pastilhas de garganta (não se esqueça de chupar todo o açúcar antes e depois cuspi-las) e tudo cremoso ou pastoso que você encontrar. Arrume um jarro grande mas com a boca pequena, discreto, aquele que fica no canto da casa dela. Misture tudo com os dedos lá dentro e cuspa as pastilhas ao final. Deixe escondido até alguém descobrir. Fuja das palmadas dando risadas, sempre. Cantando.

sábado, 31 de outubro de 2009

Acho que não vou mais te ligar. Quando senti que era pra sempre e sei que você também sentiu eu pensei que fosse mesmo verdade. Mas essa tal da distância acaba com tudo. Cheguei e logo te mandei um cartão postal e pensei que antes de te mandar eu já ia receber um seu mas não tenho nada seu até hoje, quase um ano depois. Não vou mais te ligar bêbada ou quando consigo um emprego. E pare de me tratar bem, não quero que você me trate bem. Nossa amizade está resumida ao seu pen drive e a garrafa de favaíto que está no quarto da minha irmã e que um dia eu vou fazer questão de beber mesmo sem gelar.
Não sei se volto no seu país, não sei mais se quero voltar. E sei que o erro foi todo meu, que eu amo demais mesmo e logo quero instaurar um latifúndio no meu pescoço pra gente sempre conversar, fico mesmo querendo criar gaivotas de verdade. Mas você não precisa de criar gaivotas, você já as tem no seu terraço.
Meu erro é querer gaivotas no lugar de pardais. Devo almejar o cinza e marrom das penas daqueles que entram na minha casa, não o peixe no bico dos que voam.
Achei que era mesmo de verdade e acho que era mas essa nossa mania de pensar que somos importantes para o outro é mesmo ridícula e duradoura. Que somos insubstituíveis, que somos singulares e sempre amados. Podemos mesmo até ser, mas só até a vizinha de baixo se mudar e chegar uma outra mais interessante, que seja até sua colega de profissão. Aprendi a respeitar o tempo de cada um mas ainda não sei perder. É como se o jogo que começamos tivesse mudado as regras muito rapidamente, não percebi o momento e fiquei jogando sozinha, suspensa no ar, esperando a corda bater no chão para pular novamente. Acabei de apagar seu telefone. Ficamos assim, no silêncio do presente esperando algum descuido da lembrança do passado cobiçado.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Não sei escrever pra todos, só pra alguns interlocutores. Nunca poderei publicar nada em larga escala, apenas transmitir bilhetes em guardanapos de butecos - ou em cartões postais....

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Carta Aberta Ao Senhor Barão


Caro Senhor Barão Amante das Gaivotas:

me perdoe a intromissão no vosso tempo tão concorrido e ocupado pela belíssima missão de vossa Senhoria em alimentar todas as gaivotas da Costa Norte do Antigo Reino dos Colossos Colossais mas prometo que serei breve. Não posso deixar de dirigir-lhe algumas abissais impressões à cerca da minha humilde passagem em terras inseridas dentro da fronteira do vosso Condado.

Hoje resolvi, ao longo de toda a tarde, dedicar-me à humilde tarefa de fazer as sardinhas voarem. Juntei alguns pimentos e um punhado de batatas cozidas e protei-me na frente de um arpoador. Pra meu espanto todas fizeram fila ao perceber a movimentação. De fato a ciência da domesticação das sardinhas evoluiu de forma impressionante, deixando para trás outras ciências que julgava mais desenvolvidas tais como a de bater pregos em pães ou a produção de favaítos dançantes ao longo do Rio Douro.

Sinto-me extremamente surpreendido ao perceber que o empurrão de turcos resididos ao longo da linha do comboio central ecoam de forma mais presente do que daqueles da mesma nação localizados fora da linha do mesmo comboio. Será alguma espécie de fortificante trazido pelo consumo diário de couves? Ou simplismente a diferenciação do arqueduto que leva a água aquela determinada população? Não posso precisar mas até hoje o vento produzido pelo "abraço nada convencional" ecoa em meus tímpanos.

Mesmo que de forma malfadada devo admitir, também, o meu espanto ocorrido pela modificação da minha rotina de limpeza capilar. Após minha estadia no seu belo e terrível reino observei que piolhos e lendias não mais me incomodam. Crio, com uma alegria rotineira, pulgas e culpas dentro do sapateiro do meu quarto, já que almejo por uma privacidade nas coisas que mais admiro.

Na esfera gastronômica visualizei o tipo ideal de dieta que construí durante toda a vida e que nunca consegui, efetivamente, construir a ponte entre a metafísica e a empiria: a solução do terraço é sempre poética e de uma amplitude inexplicável. Até porque quando se toca uma campainha e não se escuta o findar da refeição podemos pensar que na verdade ela ainda não começou e que, por esse mesmo motivo, não temos que varrer a casa ou que receber o carteiro.

Para terminar (já que prometi ser breve), as jangadas que desfilam ao longo das principais avenidas são, para além do charme, o encontro entre o conforto do transporte coletivo e o diálogo entre o futuro e o passado já que nos sentimos como o velho e bom vinho do Porto, transportados para envelhecer.

Muito admiro tal Condado e anseio a possibilidade de recebê-lo em terras tão humildes, dado a magnitude de todas as montanhas, aldeias e tremoços saltitantes em cada cabeça cidadã de seu lar. Que o vosso lar prospere com a ajuda do Nosso Senhor louvado e idolatrado António Variações, aquele que perdeu a cabeça por vós e que até hoje possui o corpo à espera da redenção.

Com os melhores cumprimentos,

Barão Suburbano Maletta.

Sub Reino Vermelho Ao Leste, Província perdida ao lado da cachoeira, membro honorário da Ceita da Madrugada.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Portugal: meu Porto.

Uma Oxum morando na praia, uma estrangeira, a infância no Velho Continente. A transposição do virtual para o real, do sonho para a construção, das palavras para o trabalho. Sou Florbela, vinho e queijo do Alentejo. Sou saudade de terreiro e terrenos. Um olhar na varanda chuvosa anuncia o desconhecido de ruas avantajadas e obscuras para mim. O sotaque ordena que a solidão se encoste e as poucos assento-me em uma cadeira. Recomeço tudo. Aprendo a andar, a falar, a escrever. Aprendo a apertar botões. Aprendo amar e lavar louças. A reconhecer em mim a calma e o desejo de que o rio, naturalmente, corra para o mar.


Já não é mais nada disso. Agora é o acaso e o movimento. Quero contar até 10 ao contrário para ver se chego na criação do mundo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Consequências psicológicas de um set de filmagem


Por sobre todas as coisas sinto meu corpo cansado.

Uma espécie de inércia que me paralisa os braços mas movimenta a minha mente. Deito na cama e minhas pernas doem, como se continuasse a caminhar por entre caminhos empoeirados.

É um fato que quando o corpo pára a mente trabalha - vide o sonho.

A mente só pode se realizar quando não tem que se preocupar com a matéria. Fora a empiria temos a imaginação, o remédio para o limite do humano.


Parece que nos últimos dias estou mais humana. Minha condição de proletária me exige um retorno à preocupação com veias e ligações estomacais (na verdade não apenas as minhas mas com as de todos que me cercam também).

Não posso conjecturar, apenas agir. E andar por vielas empoeiradas. Como tenho andado!

A realização de tantos atos durante um curto período de horas me faz ainda repetir, mesmo quando em casa, alguns atos que já deveria ter abandonado.


Movimento a cabeça em busca do diretor, grito procurando o companheiro que sempre some no meio do trabalho, rastejo pra não atrapalhar a luz e estou em pleno processo de desenvolvimento de uma psicose seríssima tendo a fita crepe como objeto.

Todas as noites, de forma absoluta regular, sonho com time codes correndo atrás de mim, buscando de volta o tempo perdido que não anotei na ficha de decupagem.


Já posso ter certeza de que o porteiro da locação em que gravamos me jurou de morte. Já posso sim, com certeza.

Tenho saudades da grua, já me afeiçoei por ela. Tanto tempo pra montá-la e nos vemos tão rapidamente. Acredito que se a gente se encontrasse por mais tempo poderíamos ser mais amigas. Mas ela é tão instável, sempre com altos e baixos e mudanças bruscas de direção. Me identifico verdadeiramente com ela, por isso a amizade ainda não realizada.


E os lindos filhotes, produto de todo o nosso trabalho? As fitas são como filhos - ainda não tenho nenhum mas tenho certeza de que a sensação é exatamente a mesma. A cada minuto que passa novas emoções, boas e ruins, para que ele se construa. E mesmo depois que nasce nos dá muito trabalho e preocupação. Só nos sentimos um pouco melhor quando atingem de fato a maioridade na ilha de edição. Depois de casados com as novas tecnologias, sentimos que a nossa missão de geradores foi concluída. E nos aliviamos e já queremos mais. Se ainda não temos como gerar mais um ficamos paquerando os do vizinho, como minha mãe.


Mas preciso voltar às pernas. Aos pés, para ser mais exata. Penso no que é a distância. Vinte kilômetros de tênis é uma distância bem longa, mas possível para alguém que tem dois pulmões saudáveis. Mas um kilômetro com os pés metidos dentro de um par de botinas duras e insensíveis pode parecer loucura se não fosse o torpor e a alucinação provocada por um set de filmagem.


Passada a euforia do loló meus calcanhares exigem restituição da parte que lhes foi mutilada. Agora mesmo, quando escrevo esse texto, eles reclamam da insana distância empregada nesse kilômetro embutinado, limitado por uma dureza anti natural.

Sabe, estou revendo meus conceitos sobre os caminhos. Eles podem ser empoeirados, esburacados, com empilhadeiras, extremamente quentes, longos, incômodos e cheios de equipamentos de segurança de uso obrigatório.

Mas, de longe, o mais estranho de tudo isso é que eles são incrivelmente apaixonantes. Acho que não estou nada bem, preciso ir correndo para uma farmácia, urgente.

Fernando Pessoa


"Quando te vi amei-te já muito antes.Tornei a encontrar-te quando te achei."

Paz


Cessaram os sons. A presença da figura humana não pesa sobre os meus sentidos. Somente ao longe um cão medroso continua latindo para as sombras da noite. A lua permanece em sua caminhada e o céu azul, sem nuvens, mais parece a abóboda duma gigantesca catedral. Um vento bom, caricioso, encosta-se na gente como os sucessivos meneios de um gatano. Uma estrela cadente risca o firmamento e a gente pensa num desejo recôndito crente que ele vai realizar-se. Aos poucos, as luzes se apagam nas modestas casinholas dos simples. A natureza descansa.
Meus pensamentos estão longe; fluem sem interrupção. A mente, cansada, não tem condições para ordená-los. Como um corcel brioso toma as rédeas da imaginação e passa a construir um sonho de ternura e de compreensão mútua. Neste mundo irreal tudo é paz e sossego. Palavras ásperas, ditos eivados de malícia ou de sentido duplo, atitudes irrefletidas, gestos coléricos, manifestação de ciúme ou de ódio - tudo que separa duas almas irmãs pertence ao passado. Pois cruzado o rio da Discórdia, alcamamos as Eumênides e lançamos uma ponte firme para a deusa Concórdia atravessar.


Adauto Buarque de Gusmão

Eumênides - deusas que protegiam a ordem do mundo, tanto a natural como a social.

Noite de música, dança e poemas....

Seu mistério me elogia

Às vezes me pergunto o que aconteceu.
E logo desisto da pergunta, porque não quero saber mesmo.

Me sinto sem metáforas, com um objeto claro dentro do meu desejo.
E isso me tortura, porque sempre fui ampla no mesmo território.
Agora já não tenho mais território.

Os meus 30 anos de fato me cheiram a inovação: um novo signo, um novo amor, um novo país. Acredito que o relógio cobrava o seu acontecer.

Como se eu tivesse me preparado por todo esse decorrer para desprovir-me de todas as máscaras e dar conta - sim, dar conta - de tudo aquilo que sempre fui, com uma maturidade construída.

Não que eu tivesse me escondido ou representado mas agora tenho a tranquilidade antes atropelada pela juventude.
Tá, não consigo entender a razão de querer começar tudo com você.

Sempre te disse que sabia que você iria chegar mas não esperava que fosse para mudar tudo de tudo de tudo totalmente assim!
(Não sei se devo pensar demais porém é inevitável. Quando percebo já pensei. É bom acordar e pensar em você.)

Agora me lembrei daquela sua agenda de anotações, belo suporte confuso da sua arte ainda obscura para mim.
Como gosto disso.

Gosto também de saber que ainda tenho tantas coisas a descobrir sobre você.

Tá de novo, não resisto e cito Chico Buarque: "Ah! Meu amor, para sempre, nunca me conceda descansar...".
Nunca meu amor. Nunca.

Seu mistério me elogia.
Sua sorte me intriga.
Seu humor me absorve, até quando és irônico gosto da sua displicência.

Sou alguém que quer tudo.
Vagueio à margem, pulo cercas, danço ao redor de fogueiras dentro de florestas perto de pântanos onde ninguém aparece porque, várias vezes, não são belos nem bons.
Tenho medo do ridículo mas logo me esqueço dele.
Sou fraca e insensível.

Pois, vou te contar um segredo: há várias mulheres dentro de mim. Enquanto uma diz algo a outra lá de dentro contradiz a de fora.

Louca dentro do quarto, em cima de uma cama e caseira no palco.
Bicho do mato, tímida e voraz com o desconhecido.
Amo o abismo do meu lugar familiar e só ando de muletas. Preciso delas.
Não sei escrever nadinha de nada e então me sinto tão bem que quando digo nossos disparates torno-me uma rebelde novamente.
Você fala que tenho que sentir medo. Sinto medo. Mas um medo gostoso, bom mesmo, um medo do fim da inércia que me coloquei por descuido.
Porque amo tudo que não sei. E não sei de você.

Mas sei da gente e acho que somos um grande barato mesmo tendo um imenso mar como distância empírica.

Ok, ok, ok, trabalho contra a minha angústia do imediato - embora não possa perdê-la nunca.
É ela que me faz caminhar.
E o movimento é o viver.

Foda-se: quero dormir com você.