segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Partida


Mário de Sá Carneiro


Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam refletir.

A minh´alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e de irreal;
Brandir a espada fulva e medieval
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E nunca extrema-unção de alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de ferro, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E laço de oiro e chama distendido...

Asa longínqua a sacudir loucura.
Nuvem precoce de sutil vapor.
Ânsia revolta de mistério e olor.
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E dou-me tudo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem roxa de nimbado encanto -
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar:
Sou chuva de oiro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...

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O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor - é som e aroma!
Vêm-me saudades de ter sido Deus...

Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro - é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...

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